terça-feira, 8 de março de 2011

Espécie ainda envergonhada

Quando nasci um anjo esbelto,
desses que tocam trombeta, anunciou:
vai carregar bandeira.
Cargo muito pesado pra mulher,
esta espécie ainda envergonhada.
Aceito os subterfúgios que me cabem,
sem precisar mentir.
Não sou feia que não possa casar,
acho o Rio de Janeiro uma beleza e
ora sim, ora não, creio em parto sem dor.
Mas o que sinto escrevo. Cumpro a sina.
Inauguro linhagens, fundo reinos
— dor não é amargura.
Minha tristeza não tem pedigree,
já a minha vontade de alegria,
sua raiz vai ao meu mil avô.
Vai ser coxo na vida é maldição pra homem.
Mulher é desdobrável. Eu sou.

Adélia Prado


Uma coisa que está me incomodando são essas propagandas de remédio para cólicas menstruais que fazem parecer que a mulher vira um bicho uma vez por mês. Parece sem grandes consequências e até cômico, mas pense: quando um empregador tem que escolher entre dois profissionais igualmente capacitados, um homem e uma mulher, qual dos dois será que ele escolheria para ocupar um cargo? Uma funcionária que se apresenta absolutamente descontrolada e raivosa uma semana a cada quatro deve ser muito menos produtiva, certo? Mais triste ainda é a mulher que se aproveita da tpm como desculpa para seus dias ruins (que todo mundo tem). Dessa forma, ela reforça o estigma e ainda dá motivo para a colossal injustiça que é o fato de as mulheres ainda ganharem menos que os homens numa mesma função.

No dia da mulher, aparecem várias imagens de mulheres exercendo "profissões de homem": bombeiras, mecânicas, caminhoneiras, presidentes. E de repente parece que o mundo é das mulheres e todas as lutas foram ganhas. Ora, já temos direito de votar, podemos exercer "profissões masculinas", já temos até "presidenta"! Queremos mais o quê?

Só o fato de terem de mostrar as imagens dessas "guerreiras" já mostra que o preconceito existe e é grande. Ninguém mostra foto de homens que exercem "profissões femininas". E provavelmente achariam muitíssimo indelicado fazer propaganda de negros exercendo "profissões de branco" e vice-versa. Não é?

E tem mais! Será que as mulheres que "lutam pelos seus direitos" são só as que resolvem seguir um caminho profissional em que são minoria? Será que as donas-de-casa, professoras primárias, enfermeiras e manicures deste mundo são "mulherzinhas"? Conformadas?

Não infantilizemos o feminismo. O que as mulheres querem não é ser aprendizes de homens. Nós temos um gênero próprio! A verdadeira revolução passa pela escolha da profissão, mas não se restringe a ela. Pra ser mulher de verdade, não é preciso ser superexecutiva nem rainha de bateria. Os sutiãs já foram queimados e voltamos usá-los. A luta só acaba no dia em que não precisaremos mais carregar bandeiras (ainda que metafóricas). Aceitar e ser aceita. Simples assim: "Sou mulher". Reconhecer suas forças e fraquezas e lidar com elas. Natural como um nascimento, inevitável como a morte. Antes de sermos engenheiras, esteticistas, advogadas, cozinheiras, empregadas, freiras, motoristas, somos mulheres. Vamos cumprir a nossa sina.

Somente na hora em que a genuína essência do feminismo for compreendida e aceita, a mulher vai poder pilotar o que bem entender - sejam espaçonaves ou fogões - sem precisar armar cavalos de batalha nem empunhar bandeiras.