sábado, 31 de outubro de 2009

Falando difícil - O vocabulário e o pensamento


"O homem nasceu para aprender, aprender tanto quanto a vida lhe permita"
João Guimarães Rosa

Um vocabulário vasto não implica necessariamente em um pensamento vasto, porém um pensamento amplo exige um vocabulário amplo. Por vocabulário aqui entende-se o seu sentido mais simples: número de palavras conhecidas. De forma resumida, quanto mais verbetes se conhece, mais "coisas" se pode nomear e relacionar.

Provavelmente alguém já está pensando que, se determinado indivíduo conhece os objetos e os sentimentos, pode saber relacioná-los sem precisar conhecer seus nomes. Pode até ser, mas o limite do pensamento vai muito além do que se vê e do que se sente. Afinal, como explicar a uma pessoa o que é "direito" ou o que é "literatura" sem utilizar palavras?

Além do vocabulário, para articular um pensamento é preciso também um mínimo de gramática. Afinal, uma palavra só se encaixa na outra quando vem aquele batalhão de conjunções, apostos, objetos, etc. Gramática não para tolhir, mas para dar fluidez ao pensamento, para conectar, para tornar coeso.

Nos últimos tempos tem feito muito sucesso a teoria das "múltiplas inteligências". Só que grande parte dessas são "múltiplos instintos", como por exemplo a tão citada "inteligência futebolística" de Garrincha. Inteligência para mim é capacidade de formular pensamento próprio. Todo mundo nasce com a mesma inteligência, só que nem todos procuram ou têm condições de desenvolvê-la.

Como disse o mestre Guimarães Rosa, o homem nasceu para aprender. E quanto mais aprende, mais pode aprender, mais pode pensar. Quanto mais conhecimento se tem, mais conhecimento se produz, e é assim que a gente evolui. O autor da frase lá em cima, por exemplo, chegou ao ponto em que aprendeu tanto que para seu pensamento não bastava o vocabulário existente: ele precisava criar mais palavras para se expressar. Fica um trechinho dele pra remoer:


"Eu quase que nada não sei. Mas desconfio de muita coisa. O senhor concedendo, eu digo: pra pensar longe, sou cão mestre - o senhor solte em minha frente uma ideia ligeira, e eu rastreio essa por fundo de todos os matos, amém."

João Guimarães Rosa
Grande Sertão - Veredas

quinta-feira, 22 de outubro de 2009

Falando difícil


"Os limites da minha linguagem são também os limites do meu pensamento."
Ludwig Wittgenstein

Desde que li A Trilogia de Nova York, do Paul Auster, fiquei com um pensamento na cabeça: até que ponto o domínio da linguagem - ou a falta dele - interefere na mente, no comportamento e nas relações humanas. Há uns dois ou três anos eu tenho pensado nisso, e vira e mexe encontro algum texto falando sobre o assunto.
Semana passada terminei o Vidas Secas, do Graciliano Ramos, que não trata da articulação da língua, mas da vida sertaneja. Só que, no meio do sertão, Fabiano, Sinhá Vitória e os dois meninos são como magistrais exemplos do impacto que causa a falta de vocabulário no pensar e nas atitudes.
Para completar, no vestibular simulado do Pitágoras o texto que abria a prova de português era justamente um artigo do Cláudio Moreira de Castro (Os meninos-lobo, Veja, 08 de julho de 2009) a respeito das crianças que nasceram isoladas sem oportunidade de aprender a falar. Foi o empurrão que faltava.
A discussão deu tanto pano pra manga que eu resolvi fazer não um texto, mas uma série (até agora penso em três textos, mas acho que dá para diminuir ou aumentar dependendo das ideias) sobre o "falar difícil".
Espero que gostem!

domingo, 18 de outubro de 2009

O tal do verbivocovisual

A razão humaniza o homem, mas o que o eterniza é o sentimento. Na vida eu não sei, mas na arte é assim que me parece ser. A matéria de Literatura bimestre passado foi a poesia concreta, e não posso negar que ela realmente é diferente de tudo o que já vi antes. Palavras estranhas, coloridas, de diferentes tamanhos, espalhadas na página, às vezes até a ausência delas. Se faz pensar? Sem dúvida.

Um dia minha mestra falou que a gente pode até não gostar de determinado autor ou poema, mas o que mostra se o tal poeta tem qualidade ou não é o estranhamento que ele causa em nós. O que não pode é passar indiferente. Não posso dizer que a poesia concreta passou despercebida por mim - muito pelo contrário, achei até bem esquisita - mas nada me tira da cabeça que toda aquela rebeldia contra a forma, a cor, as fontes estranhas, não têm outra função senão disfarçar um vazio imenso, gigantesco, colossal de conteúdo e alma.

Os parnasianos foram o contrário: fizeram uma escultura maravilhosa de palavras, digna de um templo grego: a forma perfeita, a métrica exata, a rima, os versos trabalhados num poema oco. O mesmo vazio de conteúdo e alma. Talvez por isso até hoje todo mundo olhe o movimento parnasiano com certa antipatia. Quem geralmente se salva é o Bilac, justamente porque tratou dos sentimentos. Com aquele jeitão, em cima de um pedestal de mármore, não importa. Os sentimentos dele são os mesmos de qualquer plebeu.

A razão nos individualiza: é ela que nos dá a graça de sermos diferentes uns dos outros. Ela nos humaniza e nos torna grandes, significativos e poderosos.
O sentimento aproxima, coletiviza. Ele é igual. E justamente por isso eterniza determinada arte, pois o cidadão vê seu sentimento no poema, do jeitinho que ele sente: só precisava de um ser iluminado - o poeta - para transcrevê-lo.

O apego demasiado à forma - seja à perfeição ou à completa disgressão dela - é disfarce. A métrica é boa, a rima é boa, quando servem para enriquecer o conteúdo do poema, o sentimento do poema. O que não pode é deixar a alma em segundo plano para caber num verso decassílabo ou redondilho.

Até porque coca-cloaca do Décio Pignatari e o crisantempo do Haroldo de Campos são uma beleza, mas nunca vão ter a sustância da terra de um João Cabral de Melo Neto, a doce ironia das ruas de um Mário Quintana ou o pulsar desesperado do coração de um Álvares de Azevedo.


Para quem ficou curioso
http://www.poesiaconcreta.com.br/

quinta-feira, 15 de outubro de 2009

Crianças desaparecidas

Na segunda feira muitas crianças receberam presentes e abraços. Houve sorrisos, papel brilhante, cartões alegres. Muitas, não todas. Algumas crianças não: as crianças desaparecidas.
Essas crianças se contentaram com um sorriso indulgente, e talvez assistiram escondidas a algum desenho animado ou cantaram músicas da Xuxa no banho. Elas já sumiram há um bom tempo. A maioria dos pais já se desiludiu e parou de procurá-las e a quase unanimidade deles sente saudades.
Muitas delas sentem falta de casa, e algumas chegam a lembrar dos bons tempos passados com uma boa dose de lágrimas. Essas crianças trabalham ou estudam ou fazem as duas coisas. Talvez quem mais as procure sejam elas próprias. Muitas vezes elas só querem um colo quentinho ou um bolo de chocolate assando no forno.
As crianças desaparecidas somos nós.
As crianças que fomos não morreram: elas sumiram. Elas existem. Estão em algum lugar, brincando de Barbie ou jogando bolinha de gude.
Procura-se.
Procura-te.